Fugir de casa
Qual é a criança que nunca sonhou em
fugir de casa? Todo mundo tem uma experiência pra contar. A minha aconteceu
quando eu tinha uns sete anos de idade. Depois de ter minhas reivindicações não
aceitas - provavelmente eu queria um quarto só para mim e não precisar mais
escovar os dentes - preparei uma mochila e disse "vou-me embora".
Tchau, me responderam.
O quê??? Então é assim? Abri a porta
do apartamento, desci um lance de escada e ganhei a rua. Fingi que não vi minha
mãe me espiando lá da sacada. Fui caminhando em direção à esquina, torcendo
para que viessem me resgatar, mas nada. Olhei pra trás. Minha mãe deu um
abaninho. Grrrr, ela vai ver só. Apressei o passo. Dobrei a esquina, sumi de
vista e, claro, entrei em pânico. Pra onde ir? Antes de resolver entre pedir
asilo numa embaixada ou tentar a vida numa casa de tolerância, minha mãe já
estava me pegando pelo braço e dizendo que a brincadeira havia acabado. Fiquei
aliviada, mas a ideia de fugir ainda me ocorreria muitas vezes.
O desafio agora seria elaborar um
plano de fuga mais realizável, pois estava provado que, sim, eu queria escapar,
mas ao mesmo tempo queria ficar. O mundo lá fora era libertador, mas também
apavorante. Eu estava numa encruzilhada: queria ser quem eu era, e ser quem eu
não era. Qual a saída? Ora, escrever.
Um plano perfeito. De banho tomado,
camisola quentinha e com os dentes escovados, eu pegava papel e caneta antes de
dormir e inventava uma garota totalmente diferente de mim, e que não deixava de
ser eu. Fugia todas as noites sem que ninguém corresse atrás de mim para me
trazer de volta. Ia para onde bem queria sem sair do lugar.
Viva as válvulas de escape, que
lamentavelmente não gozam de boa reputação. Não sei quem inventou que é preciso
ser a gente mesmo o tempo todo, que não se pode diversificar. Se fosse assim,
não existiria o teatro, o cinema, a música, a escultura, a pintura, a poesia,
tudo o que possibilita novas formas de expressão além do script que a sociedade
nos intima a seguir: nascer-estudar-casar-ter filhos-trabalhar-e-morrer. Esse
enredo até que tem partes boas, mas o final é dramático demais.
Overdose de realidade é a ruína do
ser humano. Há que se ter uma janela, uma porta, uma escada para o imaginário,
para o idílico - ou para o tormento, que seja. Ninguém é uma coisa só, ninguém
é tão único, tão encerrado em si próprio, tão refém do que lhe foi ensinado.
Desde cedo fica evidente que nosso potencial é múltiplo, que há um deus e um
diabo morando no mesmo corpo. Como segurar a onda? Fugindo de casa, mas fugindo
com sabedoria, sem drogas, sem violência - fugindo para se reencontrar através
da arte, através do espetáculo da criação, mesmo que sejamos nossa única
plateia. Cada um de nós tem obrigação de buscar uma maneira menos burocrática
de existir.
Martha Medeiros
Nenhum comentário:
Postar um comentário