O
sol ainda nem havia mostrado seu rosto, e lá estava ela, ávida por mais um dia,
Rebbeca estava de pé há algum tempo. Tentou fazer com que suas mechas castanhas
e onduladas ficassem arrumadas, ela não gostava da forma que o seu cabelo se
adequava ao seu rosto, deixava-a ainda mais nova do que ela queria.
De
frente ao espelho, ela olhava o reflexo daquele rosto infantil, seus olhos
castanhos, que todos os dias reproduziam uma infinidade de cores e temas,
pareciam ainda mais estranhos quando eram observados juntamente com o seu nariz
afilado e seus lábios finos que pareciam ter sido feitos por um escultor
e dificilmente executavam outro
movimento que o de um pequeno sorriso, quase imperceptível.
Rebbeca
tinha a pele morena, lembrava a cor de mel, era mais alta que todas as crianças
da sua idade, e como se não bastasse, também era a mais magra. A razão de seu
pouco peso estava longe de ser falta de apetite, na verdade, a condição de vida
que lhe era imposta justificava qualquer motivo.
Ela
vinha de uma família muito humilde, era a filha mais velha de um conjunto de
cinco filhos, sua mãe, por mais estranho que fosse, era gorda, tinha um rosto
marcado pelas dificuldades da vida e geralmente estava gritando frases soltas:
-Menino
não faça isso, você vai se machucar;
-Saia
do sol, você vai adoecer.
A
única pessoa que ela realmente admirava era seu pai, todos os dias antes do sol
nascer, lá estava aquele homem, moreno, magro, sofrido, mas com uma postura
ríspida de quem vai mais uma vez vencer o mundo e trazer pra casa um pouco mais
de existência. Se existiam super-heróis, seu pai deveria ser um deles.
Rebbeca
desistiu de ajeitar seu cabelo, amarrou-o com um “elástico” bem no alto da
cabeça, tomou um copo de leite ainda quente e prosseguiu ao lado do seu pai até
a barraca, na feira, aonde eles vendiam frutas e verduras.
Qualquer
outra pessoa consideraria o fato de passar o dia ali, ao lado de todas aquelas
barracas de ferro e teto de lona, com o sol sobre as suas cabeças mostrando o
quanto o dia podia ser quente, rodeado de feirantes gritando e anunciando seus
produtos, algo extremamente tedioso. No entanto, Rebbeca amava tudo aquilo, não
havia ambiente melhor do aquele, no mundo dela nada poderia ser mais
interessante do que passar o dia observando o real arcabouço da espécie humana.
E a feira, com todos os seus feirantes, com todos os seus clientes, com todo o
publico figurante que ela possuía era uma prato cheio e transbordante pronto
para ser consumido.
Rebbeca
achava a vida injusta demais para com alguns, e claro, ela estava incluída
nessa grande população que vivia com o mínimo, não que ela passasse fome, não,
mas tudo era regrado, como eu disse: o mínimo. Tudo que ela queria era um dia
poder apreciar e deliciar uma pizza enorme, cheia de rodelas de calabresa, ela
tinha visto, certa vez, uma senhora comendo uma e então, ela decidiu que quando
crescesse ela iria comer muitas pizzas, muitas.
No
entanto, chega de conversa fiada, a barraca já está montada, frutas e legumes
no lugar e lá vamos nós a mais um dia de feira.
Rebbeca
sentou em um banquinho por detrás da barraca para que pudesse recepcionar os
clientes de frente. Naquele dia seu primeiro cliente era um homem alto, bonito
e parecia ser umas daquelas pessoas que vivem com uma renda acima da pobreza e
bem abaixo a dos ricos. Ela se perguntou em que ele trabalharia, parecia
simpático e um tanto animado. Pediu dois mamões, um melão, um cacho de banana e
algumas outras frutas. Pagou. Sumiu.
Essa
era a grande magia da feira, centenas de atores que se apresentavam em um palco
improvisado por alguns minutos e que contavam pequenas partes de suas vidas.
Depois
veio uma senhora, essa seu pai atendeu, ela era branca, forte, vinha
acompanhada de um menino que meio emburrado se reclamava de alguma coisa. Pediu
algumas frutas, outras verduras. Rebbeca sentada só observava. A mulher deixava
transparecer que vivia feliz, com toda certeza ela fazia parte da minoria que
nunca se perguntou o que é felicidade, mas que são extremamente felizes. Pagou.
Sumiu.
Entre
um cliente e outro, entre um grito e outro, Rebbeca observava.
-Olha a banana. Banana. A senhora
quer comprar banana?
-Mamão.
Mamão só um e cinquenta o quilo.
E
o que mais lhe intrigava era o Senhor da banca em frente, ele também vendia
frutas e verduras, só que diferente de todos os outros feirantes, quando seus
produtos estavam maduros demais ou perto de vencer o prazo para ser consumido,
ele não dava aos mendigos e moradores de rua. Ele deixava exposto até que
apodrecessem e então rebolava na rua, vinham animais de tudo quanto era lugar e
faziam aquela lambança.
Seria
demais distribuir os alimentos durante o entardecer? Afinal, à tarde eles ainda
estavam frescos, mas ao enoitecer tinha que ser descartados.
Foi
então que a grandiosa ideia surgiu na mente de Rebbeca. Todos os dias na hora
do almoço aquele Senhor pedia a ela para que tomasse conta da sua barraca, ele
almoçava e depois retornava. Todos os dias as coisas eram iguais, porém naquele
dia ela faria algo extremamente controverso.
...
Chegou
a hora do almoço.
Rebbeca
esperou que o Senhor se afastasse o suficiente e então, tomada por uma coragem
repentina e inexplicável, ela começou a gritar a todos os moradores de rua, a
todas as crianças que mal se alimentava:
-Venham,
venham, é de graça, peguem, é tudo de graça. Levem o que quiser: maçã, banana,
uva, mamão. Venham, é tudo de vocês.
Em
questão de segundos fez se ao redor da barraca uma pequena multidão de crianças
e adultos que mendigavam por ali. Era difícil de dizer se quem era mais feliz
era o doador ou receptor. Havia também os gananciosos, claro, eles estão em
toda parte.
De
frente a tudo aquilo o pai de Rebbeca se perguntava se a filha havia ficado
louca, ele a olhava abismado enquanto ela sorria distribuindo uma maça a um
garotinho. Como ela queria dizer ao pai que não estava louca, que ela estava,
somente, esgotada. Esgotada. A sua atitude precisamente impensada não tinha
nada haver com politica, ou aquilo que ela ouviu na escola, Socialismo,
Capitalismo, não, era somente o resultado da mais pura e sincera necessidade
humana: a de ser humana.
As
frutas iam sumindo de dentro da barraca em questão de segundos, pessoas corriam
de todos os lados, gritavam, chamavam. Havia uns que levaram somente o
necessário, outros que encheram os bolsos, e ainda outros que não conseguiram
alcançar alguma coisa.
No
meio de toda aquela algazarra, chegou o Senhor dono da barraca, ele estava
vermelho de tanto ódio, perguntava a si mesmo como aquela menina estúpida e
idiota poderia ter feito o que fez. Todas aquelas frutas eram dele, somente
dele. Tomado por um ódio tão grande, que nascia na sua mente, processando tudo
aquilo, percorreu sua espinha, chegou aos músculos do seu braço direito e em um
único impulso transformou-se em força.
Força
essa, tão inesperada, que atingiu Rebbeca de surpresa, fazendo a cair e bater
com todo o ímpeto raivoso sua cabeça no chão. Mais doloroso do que sentir a mão
de seu agressor em seu rosto, era sentir, enquanto caía, a tapa da vida
dizendo-a o quanto é torturante ser corajoso. Sim, enquanto caía, pois ao
chocar a sua cabeça com o chão esvaziou se do seu corpo a sua alma.
Aos
que acreditam em céu, eu poderia dizer que Rebbeca está no céu, e se ele for do
jeito que ela imaginava, nesse momento ela está apreciando uma deliciosa fatia
de pizza.
Aos
que acreditam em reencarnação, eu poderia dizer que na próxima vida Rebbeca
será umas dessas grandes personagens que amanhã mudaram o mundo.
Contudo,
o que realmente deve ser dito é que, se Rebbeca pudesse estar sentada em seu
banco observando tudo aquilo, ela discordaria profundamente da multidão curiosa
que se fez ao seu redor e sem razão alguma a condecorava como insensata. Um
pouco adiante, ela viria seu pai agarrado com aquele corpo vazio, manchado pelo
sangue que escorria do nariz e ainda quente do calor humano. Ele gritava por
socorro e amaldiçoava a vida por tira-lhe a sua garotinha. Também seria
possível ver seu agressor deslumbrado com a catastrófica consequência de seus
atos. No entanto, em um cantinho à direita, entre seu pai e seu agressor, é
possível ver um garotinho maltrapilho comendo uma maçã fresquinha e sorrindo ao
sentir o doce gosto em seu paladar.
“Não
tenha ideias pelas quais valeria a pena viver. Tenha
ideias pelas quais a morte é só mais uma decisão.”
P.S.: De mim é difícil falar, mas da nossa amizade surgem as mais belas palavras. Dedicado ao meu grande amigo, Rodolfo Xavier. Obrigado pelo seu carinho e excepcional apoio.
Adorei o texto Debs, muito bonito!
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