Estou
rasgando minha carne, posso ver o sangue saltar de minha pele. Estou remoendo
cada parte de mim. Estou perto o suficiente para ver minhas camadas de tecidos
se desfazerem nas palmas das minhas mãos. O sangue continua escorrendo,
no momento que corre nas minhas veias é vida, quando escorre por entre os dedos
é só sangue.
Agora já
posso ver aquilo que me mantém vivo, ele palpita como se o mundo fosse feito só
dele. Uma máquina feita de carne e sangue, mas diferente de todo o resto que
também se compõem desses ingredientes, ele é mecânico, nada no mundo importa,
só o seu batimento, porque o mundo só existe se ele palpitar. E sem perguntar
absolutamente nada, ele altera meu ritmo, quase desfalecendo, quase explodindo.
Uma máquina independente cujo combustível é a vida e que me mantém vivo.
E é aqui,
quando posso vê-lo, que quero encontrar com a minha alma. Não importa o sangue,
não importa a pele rasgada. Essa busca é maior do que tudo. Eu sei, eu sei...
Eu poderia procurá-la em uma lágrima, eu poderia tê-la encontrado em um
sorriso, eu sei! Mas, não, não! É aqui que eu quero encontrá-la, aonde me
mantém vivo, é aqui que devo encontrá-la.
Finalmente
estamos face a face. Só então percebo o quanto sangrei, o quanto dói. Essa dor
me dilacera, é como se eu estivesse me partindo ao meio, é como se eu não
pudesse fazer nada além de observar enquanto a outra metade de mim se separa,
lentamente, daquilo que um dia foi um só corpo.
Ela acabou
de me saudar com um olhar afetuoso e perguntou-me como estou. Como ela poderia
ser tão cruel, eu havia me despedaçado, eu estava sangrando, eu estava
consumida, ela poderia, ao menos, apiedar-se de mim.
Não há
razões para ironias, eu sou parte de você e você é o meu arcabouço, seja
sincera comigo... porque, se você, minha alma, não puder ser sincera, a minha
dor será como uma chaga mortal, que se apoderará de mim, lentamente, e por fim
irá me definhar, como alguém que guarda a melhor parte do bolo para saborear
por último.
Eu estou
vazia de mim, vazia de sonhos, vazia de sinceridade, vazia de amores, vazia de
esperança, vazia de vida, vazia de saudade, vazia de acreditar, vazia de
futuro, vazia de presente, vazia de passado, vazia de alguém, vazia de coragem,
vazia de autoconfiança, vazia de defesas, vazia de vazio, vazia de viagens,
vazia de compreender, vazia de ouvir, vazia... Vazia de olhar, vazia de pupilas
me encarando. Vazia... Vazia de você, minha alma.
Até mesmo a
menor espetada da agulha me faz sentir-me ainda mais vulnerável, me sinto como
uma máquina que só responde aos comandos que são acionados. Sinto-me tão
mecânica quanto aquele que mantém viva, só que sem o palpitar certo, sem o
ritmo certo.
Ela me
sorriu amigavelmente outra vez.
Quando ia
explodir de repugnância, ela me tocou, tocou-me no exato local em que a minha
maquina de existência palpitava, eu congelaria esse segundo para sempre. Ao seu
toque, minha dor se esvaiu, cessou. No entanto, ela começou a remexer dentro de
mim a procura de algo. Nesse momento tive vontade de vomitar, fiquei enjoada,
irritada, como ela ousaria remexer-me como se eu fosse uma amontoado de papeis
dentro de uma gaveta qualquer.
Quando
finalmente ela encontrou, tirou de dentro de mim suas mãos, a dor me
despedaçou, queria gritar, gritar e gritar. Foi quando vi que nas palmas das
suas mãos havia algo, algo que poderia ser comparado com uma cidade cercada por
uma muralha espessa, grossa, de concreto, a cidade estava segura.
Porém,
aquilo estava longe de ser uma cidade. Era um amontoado de sentimentos,
sorrisos, esperança, lágrimas, paixões, amores, compreensão, revoltas, perdão,
raivas, sonhos, medos, coragem, saudades, futuros, pupilas, todos cercados por
uma muralha inatingível. Limpo e seco. Ela me disse:
-Você
criou um lugar seguro para si, e lá você tem guardado tudo que considera importante:
seus sentimentos mais puros com medo de se magoar, suas raivas mais profundas
com medo de gritar, seu perdão mais sincero por achar que ele não mudaria nada,
seu amor mais eterno por achar que ele é imaturo demais para ser confessado,
suas mágoas por considerar-se inatingível. E, acredite, você tem sido
inatingível. Nós fomos inatingíveis, mas isso a deixou vazia. Vazia de si
mesma, porque você se protegeu até de você.
Nesse
instante, minha dor física era inexistente comparada ao meu choque de
realidade. Ela continuou:
-Só há um
meio de ser cheia e transbordante de novo, e para que isso aconteça levará
tempo, não será preciso derrubar a muralha por inteiro, não. Essa estrutura
física e sólida que você construiu é a base de muitos outros edifícios, será
preciso transformá-la em colunas. Sim, colunas. Por oras você irar construir
colunas desnecessárias, será preciso derruba-las. Por oras você não irar
construir colunas necessárias, alguns edifícios irão desabar, reedifique-os.
Por oras será preciso construir paredes, e se por acaso elas interromperem a
passagem, construa portas, elas não precisam ser inteiramente seguras, em algum
momento também será preciso arrombá-las. Saiba, será um trabalho árduo [tijolo
por tijolo] e que será possível aproveitar alguns tijolos da muralha, mas não
aproveite tudo. Será um trabalho solitário, mas não precisa ser melancólico, e
em alguns momentos será preciso pedir ajuda, não se detenha. Você irá perceber
que ter com quem comemorar a queda da muralha será fascinante, só escolha as
pessoas certas. E se você tiver medo, lembre-se, nem todos sabem que a muralha
caiu e, ainda assim, você tem colunas bem postas, nada é mais seguro.
Ela
voltou pra dentro de mim, um longo silêncio se fez. Eu ainda sentia a dor por
estar com o peito aberto, mas não era mais a mesma dor, o céu agora era azul.
Comecei a limpar o sangue ao redor da ferida, quando tomei noção da sua
proporção comecei a costurá-la, doeu, sangrou ainda um pouco, terminei de
costurá-la. Nada estava sarado, levaria tempo, havia ainda manchas do sangue
escorrido, ficaria ainda uma cicatriz. Não tem problema, ela será minha
lembrança viva da ferida que abriu... que foi costurada e cicatrizou.
P.S.: Não deveria publicar esse texto.
No entanto, quem nunca teve um dia de tempestade,
não consegue, ao menos, imaginar o quanto o pôr do sol é deslumbrante.
D. Andrade
"E por quantas tempestades temos que passar? Ou quantas mais vão me desmoronar? Porém, quantos dias de sol brilhante ainda irá surgir? E por quantas vezes ainda irei me reerguer?" Mais uma vez me deleitei e me identifiquei com seus textos.
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