sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Muralha de Concreto



Estou rasgando minha carne, posso ver o sangue saltar de minha pele. Estou remoendo cada parte de mim. Estou perto o suficiente para ver minhas camadas de tecidos se desfazerem nas palmas das minhas mãos.  O sangue continua escorrendo, no momento que corre nas minhas veias é vida, quando escorre por entre os dedos é só sangue.
Agora já posso ver aquilo que me mantém vivo, ele palpita como se o mundo fosse feito só dele. Uma máquina feita de carne e sangue, mas diferente de todo o resto que também se compõem desses ingredientes, ele é mecânico, nada no mundo importa, só o seu batimento, porque o mundo só existe se ele palpitar. E sem perguntar absolutamente nada, ele altera meu ritmo, quase desfalecendo, quase explodindo. Uma máquina independente cujo combustível é a vida e que me mantém vivo.
E é aqui, quando posso vê-lo, que quero encontrar com a minha alma. Não importa o sangue, não importa a pele rasgada. Essa busca é maior do que tudo. Eu sei, eu sei... Eu poderia procurá-la em uma lágrima, eu poderia tê-la encontrado em um sorriso, eu sei! Mas, não, não! É aqui que eu quero encontrá-la, aonde me mantém vivo, é aqui que devo encontrá-la.
Finalmente estamos face a face. Só então percebo o quanto sangrei, o quanto dói. Essa dor me dilacera, é como se eu estivesse me partindo ao meio, é como se eu não pudesse fazer nada além de observar enquanto a outra metade de mim se separa, lentamente, daquilo que um dia foi um só corpo.
Ela acabou de me saudar com um olhar afetuoso e perguntou-me como estou. Como ela poderia ser tão cruel, eu havia me despedaçado, eu estava sangrando, eu estava consumida, ela poderia, ao menos, apiedar-se de mim.
Não há razões para ironias, eu sou parte de você e você é o meu arcabouço, seja sincera comigo... porque, se você, minha alma, não puder ser sincera, a minha dor será como uma chaga mortal, que se apoderará de mim, lentamente, e por fim irá me definhar, como alguém que guarda a melhor parte do bolo para saborear por último.
Eu estou vazia de mim, vazia de sonhos, vazia de sinceridade, vazia de amores, vazia de esperança, vazia de vida, vazia de saudade, vazia de acreditar, vazia de futuro, vazia de presente, vazia de passado, vazia de alguém, vazia de coragem, vazia de autoconfiança, vazia de defesas, vazia de vazio, vazia de viagens, vazia de compreender, vazia de ouvir, vazia... Vazia de olhar, vazia de pupilas me encarando. Vazia... Vazia de você, minha alma.
Até mesmo a menor espetada da agulha me faz sentir-me ainda mais vulnerável, me sinto como uma máquina que só responde aos comandos que são acionados. Sinto-me tão mecânica quanto aquele que mantém viva, só que sem o palpitar certo, sem o ritmo certo.
Ela me sorriu amigavelmente outra vez.
Quando ia explodir de repugnância, ela me tocou, tocou-me no exato local em que a minha maquina de existência palpitava, eu congelaria esse segundo para sempre. Ao seu toque, minha dor se esvaiu, cessou. No entanto, ela começou a remexer dentro de mim a procura de algo. Nesse momento tive vontade de vomitar, fiquei enjoada, irritada, como ela ousaria remexer-me como se eu fosse uma amontoado de papeis dentro de uma gaveta qualquer.
Quando finalmente ela encontrou, tirou de dentro de mim suas mãos, a dor me despedaçou, queria gritar, gritar e gritar. Foi quando vi que nas palmas das suas mãos havia algo, algo que poderia ser comparado com uma cidade cercada por uma muralha espessa, grossa, de concreto, a cidade estava segura.
Porém, aquilo estava longe de ser uma cidade. Era um amontoado de sentimentos, sorrisos, esperança, lágrimas, paixões, amores, compreensão, revoltas, perdão, raivas, sonhos, medos, coragem, saudades, futuros, pupilas, todos cercados por uma muralha inatingível. Limpo e seco. Ela me disse:
-Você criou um lugar seguro para si, e lá você tem guardado tudo que considera importante: seus sentimentos mais puros com medo de se magoar, suas raivas mais profundas com medo de gritar, seu perdão mais sincero por achar que ele não mudaria nada, seu amor mais eterno por achar que ele é imaturo demais para ser confessado, suas mágoas por considerar-se inatingível. E, acredite, você tem sido inatingível. Nós fomos inatingíveis, mas isso a deixou vazia. Vazia de si mesma, porque você se protegeu até de você.
Nesse instante, minha dor física era inexistente comparada ao meu choque de realidade. Ela continuou:
-Só há um meio de ser cheia e transbordante de novo, e para que isso aconteça levará tempo, não será preciso derrubar a muralha por inteiro, não. Essa estrutura física e sólida que você construiu é a base de muitos outros edifícios, será preciso transformá-la em colunas. Sim, colunas. Por oras você irar construir colunas desnecessárias, será preciso derruba-las. Por oras você não irar construir colunas necessárias, alguns edifícios irão desabar, reedifique-os. Por oras será preciso construir paredes, e se por acaso elas interromperem a passagem, construa portas, elas não precisam ser inteiramente seguras, em algum momento também será preciso arrombá-las. Saiba, será um trabalho árduo [tijolo por tijolo] e que será possível aproveitar alguns tijolos da muralha, mas não aproveite tudo. Será um trabalho solitário, mas não precisa ser melancólico, e em alguns momentos será preciso pedir ajuda, não se detenha. Você irá perceber que ter com quem comemorar a queda da muralha será fascinante, só escolha as pessoas certas. E se você tiver medo, lembre-se, nem todos sabem que a muralha caiu e, ainda assim, você tem colunas bem postas, nada é mais seguro.
Ela voltou pra dentro de mim, um longo silêncio se fez. Eu ainda sentia a dor por estar com o peito aberto, mas não era mais a mesma dor, o céu agora era azul. Comecei a limpar o sangue ao redor da ferida, quando tomei noção da sua proporção comecei a costurá-la, doeu, sangrou ainda um pouco, terminei de costurá-la. Nada estava sarado, levaria tempo, havia ainda manchas do sangue escorrido, ficaria ainda uma cicatriz. Não tem problema, ela será minha lembrança viva da ferida que abriu... que foi costurada e cicatrizou.

P.S.: Não deveria publicar esse texto. 
No entanto, quem nunca teve um dia de tempestade,
não consegue, ao menos, imaginar o quanto o pôr do sol é deslumbrante.
D. Andrade

Um comentário:

  1. "E por quantas tempestades temos que passar? Ou quantas mais vão me desmoronar? Porém, quantos dias de sol brilhante ainda irá surgir? E por quantas vezes ainda irei me reerguer?" Mais uma vez me deleitei e me identifiquei com seus textos.

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